Blog
Analisando o Pensamento de Bunjak, Lord e Acton sobre a Liderança Autêntica

O estudo, publicado pelo Journal of Management and Organization (Cambridge University Press), propõe uma ruptura com a visão romantizada de autenticidade. Para os autores, ninguém é autêntico o tempo todo — o que existe é um esforço contínuo de autorregulação entre as forças que compõem o eu. A autenticidade, portanto, não é um ponto fixo, mas um movimento oscilante entre o que somos, o que desejamos ser e o que o ambiente demanda que sejamos. O líder que não entende isso se torna escravo da própria imagem, preso à ideia de consistência, quando a coerência verdadeira reside em saber lidar com a fluidez da identidade.
Há algo de profundamente psicológico nessa abordagem. Bunjak e seus colegas inserem o conceito de “processos mentais irônicos” — mecanismo pelo qual, quanto mais tentamos suprimir um pensamento, mais ele se impõe à mente. Um líder que tenta parecer calmo e confiante o tempo todo acaba, paradoxalmente, mais tenso e artificial. Essa ironia cognitiva desmonta o mito da autenticidade como controle: o líder autêntico não é aquele que domina o próprio interior, mas aquele que se relaciona com ele de modo lúcido, aceitando as imperfeições que o constituem.
É nesse ponto que o pensamento de Manfred Kets de Vries surge como espelho e antevisão. De Vries, ao longo de sua obra, insiste que o maior desafio de um líder é enfrentar o inconsciente — o conjunto de medos, vaidades e fantasmas que o poder costuma acentuar. “A liderança é uma jornada para dentro”, escreve ele, e é exatamente isso que o artigo de 2024 reitera sob a ótica contemporânea: a autenticidade é menos uma questão de transparência e mais um trabalho de integração entre forças internas em conflito.
O líder moderno opera em contextos de constante ambiguidade. A tecnologia, a aceleração do tempo, a exposição pública e a pressão emocional criam um cenário em que o “eu profissional” precisa se adaptar incessantemente sem se desintegrar. Nessa arena, a liderança autêntica se torna um exercício de consciência — uma vigilância contínua do próprio estado mental, das intenções e das reações emocionais que emergem nas interações. Autenticidade, nesse sentido, é autorreflexão em ação.
Os autores argumentam que o erro mais comum das teorias anteriores foi confundir autenticidade com espontaneidade. Um líder que simplesmente “fala o que pensa” ou “age como sente” pode ser honesto, mas não necessariamente sábio. A autenticidade, na perspectiva revisitada, é resultado de autorregulação emocional, não de impulsividade. Ela requer pausa, discernimento e a capacidade de reconhecer o impacto do próprio comportamento sobre o coletivo. O autêntico, nesse contexto, é aquele que equilibra verdade e responsabilidade — que entende que sua emoção não é neutra e que o poder amplifica tudo o que toca.
Outro ponto notável do artigo é a desconstrução da identidade como algo uno. O líder é um sujeito múltiplo: racional e emocional, seguro e vulnerável, visionário e temeroso. A tentativa de manter uma única versão de si é o que cria líderes rígidos, incapazes de responder à complexidade do mundo real. Os autores defendem que a autenticidade genuína emerge da integração dessas múltiplas identidades, e não da supressão delas. Em outras palavras, ser autêntico é ser inteiro — não simplificado.
Ao analisar essa abordagem, é impossível não perceber o quanto ela desloca o eixo da discussão sobre liderança. A questão deixa de ser “como devo parecer” e passa a ser “como eu me regulo internamente para agir de modo coerente com meus valores, mesmo em meio ao caos”. Isso tem implicações diretas em programas de formação executiva, que por décadas priorizaram ferramentas comportamentais e deixaram de lado o estudo do eu psicológico. Bunjak, Lord e Acton defendem uma liderança que nasce do autoconhecimento emocional e da capacidade de perceber as próprias distorções cognitivas em tempo real.
Essa leitura mais profunda da autenticidade também toca o tema da vulnerabilidade, mas sem cair no modismo da “liderança vulnerável” como espetáculo emocional. O ponto aqui é outro: a vulnerabilidade é o espaço onde a identidade se refaz, onde o líder aprende a suportar a tensão entre aquilo que gostaria de ser e aquilo que o mundo exige que ele seja. O trabalho interno — silencioso, muitas vezes doloroso — é o que dá substância à autenticidade exterior.
No limite, o que o artigo propõe é uma ética da lucidez. O líder autêntico é aquele que não se deixa aprisionar por nenhuma imagem de si. Ele reconhece que há contradições insolúveis em sua psique, mas escolhe agir de modo íntegro dentro delas. Essa é a forma mais elevada de coerência — e também a mais rara.
A contribuição de Bunjak, Lord e Acton é, portanto, mais do que teórica: é um convite à maturidade psicológica na gestão. Eles resgatam a autenticidade do terreno da retórica e a devolvem ao seu verdadeiro lugar — o da complexidade humana. Em tempos em que as organizações clamam por líderes transparentes, inspiradores e emocionalmente estáveis, talvez seja hora de admitir que ninguém é transparente o tempo todo, nem estável o suficiente para não oscilar. E que isso não é falha — é humanidade.
De Vries certamente sorriria diante dessa conclusão. Porque, no fundo, o que ambos os pensamentos nos dizem é que a liderança não é um cargo, nem uma técnica, nem um traço de personalidade. É uma prática contínua de autoconhecimento diante do poder, uma reconciliação entre o visível e o invisível em nós.
E se a autenticidade ainda for o ideal que buscamos, talvez devamos começar por aí — aceitando que, para ser verdadeiro, o líder precisa primeiro ter coragem de se olhar sem ilusões.
Kets de Vries, M. F. R. (2024). Leading in the Digital Age: The Human Side of Transformation. INSEAD Working Paper Series.
Westerman, G., Bonnet, D., & McAfee, A. (2014). Leading Digital: Turning Technology into Business Transformation. Harvard Business Review Press.
Avolio, B. J., Walumbwa, F. O., & Weber, T. J. (2009). Leadership: Current Theories, Research, and Future Directions. Annual Review of Psychology, 60(1), 421–449.
Schein, E. H. (2010). Organizational Culture and Leadership (4th ed.). Jossey-Bass.
INSEAD Knowledge. (2023). Why Digital Leaders Fail — and How to Succeed.
McKinsey & Company. (2022). The Human Factor in Digital Transformation.